segunda-feira, 16 de abril de 2007

Ridicule!

Ontem um tiazinha caiu no ônibus. Era obesa e desengonçada.
Era um daqueles coletivos que tem vários degraus. É um sobe e desce infeliz até atingir a final da viagem. Parece um pista de motocross. A diferença é que na anedota de ontem a tiazinha não dirigia sobre duas rodas, mas se erguia em duas pernas, roliças.
Ridicule!
A infeliz prevendo a condenação e satirização geral, tratou de encomendar a culpa pra filha. Espraguejou a pobre da criança, que ao meu ver, inocente e perplexa, não entendeu nada.
Ridicule!
A mãe recompondo as banhas dispersas pelo chão, ajeitando o cabelo e recompondo seus brios, lascou um beliscão na filha, alfinetando: “não me empurre mais! Ande com calma, menina! Você nunca mais sairá de casa! Maldita”!
Ridicule!
Foi ai que a cena se complicou, a mãe prostrada, eloqüente; a filha, chorosa, reclamando inocência, e eu ao lado da confusão, sendo o candidato mais provável pra acudir a ambas.
Eu estava, nessa altura bem acomodado e distraído nas minhas amenidades diárias, pagando pra não sair do lugar. Confesso que ria. E ria disfarçadamente, ruminando aquela situação vexatória. A passageira me encarava, pedindo socorro. Ai ai ai !
Ridicule.
Ela se ergueu, altiva e determinada. Estava recomposta cheia de autocomiseração. Jogara a culpa do tropeço na criança, sacudira a poeira e dera volta por cima. A viagem prosseguia, o ônibus sacolejava e eu, sereno e tranqüilo, fiquei risonho e inerte ante a infâmia alheia de estrebuchar no ônibus.
Livre-me o destino disto!
Ridicule!
Ridicule!
Ridicule!

domingo, 15 de abril de 2007

Vamos ao SHOPPING!


Qual a utilidade de um shopping?
O shopping é um centro de compras, certo? Shopping center! Pessoas pouco ou muito endinheiradas se dirigem ao templo apoteótico do consumo pra realizar a atividade máxima das cidades: comprar. Comprar é bom e quanto mais, melhor. A única infelicidade é que geralmente o desejo de consumo varia na razão inversamente proporcional ao poder de compra.
Ainda assim vamos ao shopping. Claro que lá não tem só lojas. Tem cinemas, restaurantes, lanchonetes, casquinhas de sorvete e até parquinho meia boca pra agradar as crianças, enquanto os pais agradecem aos céus a existência sublime dos shoppings!
Então o shopping também é cultura, afinal cinema é cultura - mesmo que quando você entra na fila, e ver que caiu na enrascada de optar entre Xuxa Gêmeas, Didi e os 300..... - não houvesse o detalhe incômodo da bilheteria, que é consumo também.
Até a atividade mais desejada entre jovens e E.M.O.S. de cabelos eriçados, o namoro, que é praticado no shopping, e em grande escala. Esbarra-se em casaizinhos e hoje em dia, em grupos se esfregando nos recantos menos iluminados dos shoppings. Beijos ardentes e amassos picantes. A coisa toda rola solta. E teoricamente não precisa ter dinheiro pra dar uns pegas. Não precisa gastar pra namorar. Teoricamente.
Solteiras solitárias, suicidas, gays desiludidos, manos e patricinhas, estão todos ali, num sábado a noite.
Come-se no shopping. Em várias porções e posições.
Paga-se contas.
Briga-se, chora-se, ri-se, encontra-se, perde-se, beija-se, paquera-se, inveja-se, cobiça-se.
A vida acontece no shopping.
Vive-se no shopping?
Por necessidade, depressão, consumismo ou mesmo por mera casualidade, uma ida rapidinha ou delongada ao shopping sempre faz bem. O shopping é seguro, iluminado, bem freqüentado, descorado, e totalmente climatizado pra receber seus visitantes ávidos ou informais. É bom ir ao shopping!
Não importa pra quê!

Língua!


Fui visitar o Museu da Língua Portuguesa. Aliás era pra visitar a Pinacoteca, mas estiquei o passeio. E o fiz com gosto. O museu que estreou em março de 2006 vem recebendo muitos elogios e fui conferir.
Realmente o passeio é interessante. Curto, mas emocionante. O ápice chega na apresentação de um telão, que conta brevemente a história da língua e bravamente o poder que ela têm. E em seguida nos mostra uma seleção bem interativa e visualmente interessante dos mais bem arquitetados textos da língua portuguesa. O museu ainda trata da longa etimologia da língua, desde suas origens arcaicas, até os neologismos atuais, passando por todos povos e épocas dos quais somos feitos. Pois afinal, falamos português. Pensamos em português. Sentimos em português. Criamos em português. Gostando ou não.
A partir de hoje será difícil usar a língua da mesma forma como até hoje. Já não poderei falar, pensar ou mesmo escrever da mesma forma. A forma da palavra, da letra, as construções, a comunicação única e humana da fala. Pensar nela como um instrumento vivo que consegue construir mundos e destruir nações. Que nos tira a condenação de viver no presente e deixar o passado no esquecimento.
Hoje, no dia da mentira, conto essa verdade e essa emoção.
De todos falarmos a língua, a sentença, a idéia, a verdade portuguesa.

Abaixo segue um trecho do Poema a procura da Poesia, do Carlos Drummond de Andrade:

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escurosão indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a naturezanem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,não indagues.
Não percas tempo em mentir.Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de famíliadesaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhastua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema.
Aceita-ocomo ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada umatem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:Trouxeste a chave?Repara:ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.