sábado, 10 de outubro de 2009

O amor começa.



O amor começa, no primeiro e modesto elogio que antecede o primeiro beijo; nos centavos dispensados no presente cheio de carinho e intenções, na carta nunca entregue, no correio eletrônico que se apaga e na foto de perfil e risos que se rouba sem consentimento. Começa úmido na chuva que se pega depois da conversa longa, no caminho estreito e breve entre a inocência e o colégio; e enorme ele começa e se estreita, egoísta, afoito na paixão cega, inconseqüente e infinita, cultivada no primeiro minuto de contemplação.
Pode começar o amor nas amêndoas dos olhos mais bonitos do rosto mais bonito, nos despudor da nudez, na imensidão dos cílios; na severidade dos braços que se buscam e se repelem como dois dançarinos sem treino. Na poesia natural e inconsolável dos pôr-do-sois, nos laranjas e anis distantes e altos, como as esperanças dos mais símplices; do belisco da lua no negror do mar noturno; nos bosques, nos tempos imarcescíveis dos parques. Entre uma supernova e um eclipse, na décima segunda casa de Saturno, no Zodíaco, entre a força de Sagitário e fúria de Gêmeos pode o amor nascer. Pode iniciar de repente no final de uma rima mal feita de um poema esquecível e na canção feia cantada de improviso.
Começa com o estagiário novo e a secretaria, da impressão que se tenta causar, no preciosismo das palavras, no pensamento correto e do alinhamento minucioso das saias do uniforme no segundo dia; e depois do expediente talvez o amor comece como uma hora feliz e depois demissão. Com certeza com flores recém compradas e bombons sortidos tal qual o gosto de muitos beijos. Mas na santidade do silêncio também se começa o amor, imperativo e incontrolável como a criança obstinada por um agrado, carente, impaciente e modesto.
Como um vulto, da noite começa, envolto num enigma, com milhares de luzes vindo de todas as partes, na profundidade dos salões, no neon incômodo aos olhos, pousados em longos sofás de couro. Na periculosidade nos bares, nos goles reprimidos de conhaque, no balé, depois da dança e entusiasmo; virtualmente ele nasce, através de milhas de cabos ópticos, que não se vêem; solitariamente, a sós, entre as vogais de um teclado e um cumprimento, nas ruas, numa esquina, por exemplo, em algum momento entre a distração e o êxtase, o corpo freme e o amor começa.
Quando o tempo pára, o amor começa. Quando imprevisível muda e previsivelmente no príncipio da primavera, depois das quedas de folhas e arrepio, no inverno, no verão talvez, em Paris sempre, até na República Popular da China e no Kuait. Começa o amor, na verdade, na surpresa, entre duas ou mais pessoas, num fumante a perguntar por fogo, por interesse, depois da primeira noite de luxúria e espasmos, na viuvez, quando acaba o ódio, na admiração; sob qualquer pretexto, a contra-gosto, sem qualquer virtude, de forma imediata e irrepreensivelmente o amor começa.
Baseado em: O amor acaba, de Paulo mendes campos.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Diva


Às dezenove horas desta quarta-feira no divã rosado e poento ela senta e conta. Conta com energia e meneios nas mãos, expondo as palmas, seus segredos e anseios. Relata com estranha incredulidade, como largado no meio fio, numa porta de carro batida, veio o fim do seu romance, do seu amor. Descrevia, trocando palavras, seu delicado relacionamento, repletos de dúvidas e frustrações. Escorregam confissões e alguns conselhos.


Sabe que seus braços ora apertados, agora apartados, estarão apontados em outra direção; consciente que seus votos agora serão para outro, um desconhecido que logo lhe causará tamanha impressão que será seu amor eterno até o breve fim. Seu afeto incondicional e indissolúvel se transformou em desespero, em ódio e depois em nada; com a vontade de contato anuindo aos poucos até a indiferença e o esquecimento. Simultaneamente o futuro incerto parecendo mais atrativo e o passado glorioso, perecendo.

Parecia também, naquela hora e naquele divã que seus relatos confusos, trocados, se confundiam com seus sentidos e não sabia o que dizer ao certo, ou o que sentia. Sabia que o queria de volta, naquele instante, mas a sua chance já não estava ali, tinha desistido também. A psicóloga, feminina, educada, solteira e leonina a tudo escutava com pertinente imunidade, tecendo e escrevendo comentários e murmúrios de contentamento. Liam-se neurótica, angústia, desequilíbrio, mágoas, inconformismo em suas notas e humanidade.

Os braços imperativos do relógio se encontravam novamente no final de hora. O assunto encerrado; a consulta encerrada, o romance encerrado. Aberto o vão mecânico do elevador a paciente neurótica, evadia-se em angústia, mirando o chão de um mundo em desequilíbrio, chorando as mágoas de seu inconformismo severo e ortodoxo, mas cheio de esperançosa humanidade.

domingo, 8 de março de 2009

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida nao tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a cricificada...a dolorida...

Sombra de nevoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguem ve...
Sou a que chamam de triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por que...

Sou talvez a visao que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

segunda-feira, 2 de março de 2009

postagem de meio de semana.


Que regozijo chegar em casa, depois de oito horas consecutivas de trabalho - sob a regência de um condicionador de ar - num dia de verão, suado e pegajoso e encontrar repousando na geladeira ainda um gole de refrigerante de cola. É o ápice da classe média.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

m u r i l o


do espanhol, “pequeno muro”

Do murilo que entre nós havia, uma muralha imensa se ergueu e sempre invencível. A princípio comecei contando as horas e depois os dias que logo se transformaram em semanas e em meses. Agora não conto mais nada, nem mesmo com a esperança.

Já pensei em te beijar e então partir; em fugir e então voltar. Já pensei gritar-lhe o nome e me esconder; te xingar e me arrepender. Já considerei o fato de nunca ver-te, de ter-lhe, por uns tempos, por uns braços; de negar-lhe, de ceder-lhe. Já pensei na existência, decadência, no amor e na solidão. Já pensei que poderia amar e ser amado, por um dia nesta vida. Já pensei em buscar-lhe e esquecer; em me entregar e me esquecer. Agora não penso mais nada.


domingo, 8 de fevereiro de 2009

Diplomacia fraternal


Minha irmã neste domingo teve a audácia de negociar a faxina de meus pertences por alguns trocados. Eu deveria despender de poucos reais em troca de uma quantia de peças de roupas lavadas e de varridas de vassoura. Jurou que só limpava meu quarto mediante um pagamento mensal. Objetivei-me absolutamente contra essa barganha, uma verdadeira afronta ao fraternismo imperante em casa. Irmãos não negociam com irmãos; ainda mais dentro do recinto sagrado do lar, onde coabitam todos os segredos da família. Usei de vários argumentos tentando concentrar na irracionalidade da proposta, sugerindo que como desocupada e mulher ela devia se ater nos afazeres domésticos sem dramas.
- Mas eu preciso fazer minhas unhas, vejam como estão encravadas.

Dissertei sobre essa tentativa infrutífera de voltar às origens primevas do capitalismo, onde um tanto de serviço corporal era trocado por dinheiro e cujas garotas de vida fácil fundaram. Era um absurdo, até uma covardia envolver a limpeza das minhas roupas íntimas numa negociação financeira. Como eu poderia fazer escambo com minha necessidade de conforto e higiene. Sugeri que ela continuasse a manter o serviço sem restrições e sem compensação monetária. Seria como um pôquer entre amigos: sem apostas ou ameaças; ganhos ou perdas. Insatisfeita com minhas argumentações, passamos da proposta tímida e amigável ao canibalismo fraternal, mordendo-nos doloridamente sem passar pelo estágio intermediário da troca de acusações e insultos. Rolamos abaixo alguns degraus na escada metafórica da Diplomacia e da escada literal, num vão de pé-direito duplo.
Terminados os curativos eu conclui: o capitalismo e suas negociações implícitas podem ser desfavoráveis e dolorosas; e observando as mulheres, cada vez com mais critérios, só posso concluir que não são humanas. Sem restrições de parentesco.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Astolfo!


Astolfo era um dos poucos homens que se importava com a opinião alheia. Nunca saia de casa sem passar ao menos sete vezes em frente do espelho, conferindo todas as possíveis falhas no seu visual impecável, retocando os vincos em suas calças de cambraia. Iniciou esse ritual desde que Dorinha o abandonara alegando falta de asseio.

- Você é desleixado, Astolfo! Você nunca depila os cabelos do pé e ainda arrota enquanto dorme.

Na verdade ele nunca tivera muito sucesso com as mulheres. Sua última namorada era de meia idade - caminhando para a idade antiga - e ambidestra, o que ele considerou uma útil e prazerosa proeza. Mas ela o trocou por um casal de gêmeos, que a usavam simultaneamente. Tentou parceiras mais jovens, mas elas estavam mais preocupadas com suas caspas, do que com suas necessidades sócio-afetivas. Viviam citando estilistas intencionais em línguas profanas e nunca aceitavam seus sapatos de couro de leopardo, comprado na única vez que foi ao exterior, nas aldeias primitivas da Tanzânia. Além dos sapatos, Astolfo trouxe consigo a idéia fixa de que mulher honesta era aquela que garantia o almoço com lanças na mão.

Usava um produto capilar específico, que disciplinava seus longos e negros fios, repartindo-os ao meio, igualmente distribuídos. Aparava todos os dias a barba rala, exalando sempre um cheiro de menta com hortelã do pós-barba comprado em liquidação. No armário antigo que herdou dos pais guardava as camisas, as calças e os acessórios colecionados ao longo dos anos. Cintos de várias cores e posições políticas, botas, broches, chapéus e até um chicote, adquirido por impulso, por influência da Anastácia.

- Querido, você já praticou sodomia?

Mas antes que pudesse experimentar todos os ritos de Sodoma, Anastácia foi presa, tentando usar frutas e outros artigos alimentícios para fins impróprios. Aquele imenso chicote de couro não foi mais utilizado; afinal o que pensariam se um homem solteiro normal e saudável usasse um artigo daqueles. E ele sempre se importava com a opinião dos outros. Era comedido com as palavras, nunca proferia palavras torpes ou adjetivos na hora errada. Fazia questão de conjugar os verbos corretamente e sempre ter um trecho de música para citar em momentos líricos.

- “Minha querida pequerrucha,
aqui nas mãos trago essas flores e essas unhas...”

Fazia questão de chamar toda nova pretendente de madamoseille, a menos que descobrisse que era casada. Chamava-a nesse caso de “vadia”.
Hoje, especialmente hoje que tinha um importante encontro com uma ex-militante do comunismo na Albânia, loira e tocadora de gaita; não achava um cinto adequado que ornasse com suas calças listradas espanholas, estava ridículo. Observando-se no espelho, convencido de que não estava trajado decentemente, foi tirando todas as peças, uma-a-uma, recompondo novamente o visual, começando dessa vez pela camisa bordô de linho italiano. Afinal, a opinião alheia importava e ele queria estar impecável.

domingo, 25 de janeiro de 2009

cito


Meu nome é Márcio Roberto de Barros Monteiro; me chamam de cito e eu não sei porque. Algumas coisas sobre mim nunca poderei explicar. Nunca entenderei a razão de ter nascido assim exatamente como sou. Nunca explicarei porque nasci paulistano, branco, sagitariano e canhoto. Meu cérebro funciona diferentemente de noventa por cento da população, nos dois hemisférios. Surgem idéias, conceitos, iras e serenidades nos diversos lobos que me recheiam o crânio. Meu canhotismo pode determinar meu gosto musical, minha paixão exacerbada por cinema e minha dificuldade em amar. Talvez seja a influencia má dos signos do Zodíacos. O fato é que milênios de recombinações genéticas formaram minha complexidade física e intelectual até eu surgir, não exatamente como queria, mas como sou. E isto é fantástico.