domingo, 30 de dezembro de 2007

As festas


Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo,
qualquer um pode começar agora
e fazer um novo fim.

Chico Xavier


Aproxima-se a perigosa época das festas. O Natal e o Ano-Novo, como se sabe, despertam os melhores sentimentos das pessoas, e isto pode ter conseqüências terríveis. São conhecidos os casos de paixão, alguns até terminando em morte, que começaram em festas de fim de ano, na firma, quando o espírito de conciliação e congraçamento leva as pessoas a baixarem a guarda e aceitarem o que normalmente não aceitariam e a fazerem o que, no resto do ano, nem pensariam, ainda mais depois de beberem um pouco. Nada mais embaraçoso do que, no segundo dia do ano novo, ter de tentar desfazer algum equívoco do fim do ano anterior.
— Dona Teresa, eu...
— Pintinho!
— Pinto. Meu nome é Pinto.
— Humm. Como nós estamos mudados, hein? Na festa...
— Era justamente sobre isso que eu queria lhe falar dona Teresa. Na festa. Algumas coisas foram ditas...
__Só ditas não, não é, Pintinho?
— Pinto. Pois é. Ditas e feitas, que...
— Já sei. Vamos fingir que nada aconteceu.
— Eu preferiria.
— Muito bem. Só não sei o que vou dizer ao papai.
— O que que tem o seu pai?
— Ele está vindo de Cachoeiro para o casamento.
Outra coisa perigosa é a pessoa se entusiasmar no fim do ano e decidir mudar. Ser outra pessoa. Deixar velhos vícios e adotar novas atitudes, ou recuperar algumas antigas. Janeiro, ou pelo menos a sua primeira quinzena, é uma espécie de segunda-feira do ano. As ruas ficam cheias de novos virtuosos, pessoas resolvidas a serem melhores do que no ano passado.
— Olhe.
— O que é isso?
— Aquele livro que você me emprestou.
— Eu não me lembro de...
— Faz muito tempo. E, na verdade, você não emprestou. Eu peguei. Eu costumava fazer isso. Nunca mais vou fazer.
— Você pode ficar com o livro. Eu...
— Não! Ajude a me regenerar. Quem fazia essas coisas não era eu. Era outra pessoa. Um crápula. Decidi mudar. Este sou o eu 2006. Comecei devolvendo todos os livros que peguei dos amigos. Acabou com a minha biblioteca, mas que diabo. Me sinto bem fazendo isto. Outra coisa. Precisamos nos ver mais. Eu abandonei os amigos. Abandonei os amigos! Olhe, vou à sua casa este sábado.
— Não. Ahn...
— Prometo não roubar nada.
— Não é isso. É que...
— Já sei. Vamos combinar um jantarzinho lá em casa. A Santa e eu estamos ótimos. Fiz um juramento, na noite de ano bom. Que me regeneraria. E ela me aceitou de volta. Há dois dias que não olho para outra mulher. Dois dias inteiros! Isso era coisa do outro.
— Sim.
— Do crápula.
— Sei...
— Eu era horrível, não era? Diz a verdade. Pode dizer. Uma das coisas que eu resolvi é não bater mais em ninguém. Era ou não era?
— O que é isso?
— Como é que eu podia ser tão horrível, meu Deus?
— Calma. Você está transtornado. Vamos tomar um chopinho.
— Não! Não posso. Jurei que não botaria mais uma gota de álcool na boca.
— Mas um chopinho...
— Está bem. Um. Em honra da nossa amizade recuperada. E escuta...
— O quê?
— Deixa eu ficar com o livro mais uns dias. Ainda não tive tempo de...
— Claro. Toma.— E vamos ao chope. Lá no alemão, onde tem mais mulher.


Luis Fernando Veríssimo


Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo,
qualquer um pode começar agora
e fazer um novo fim.
Chico Xavier

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Abra devagar


Um dos grandes embustes do natal é a necessidade do embrulhar. Nunca pesquisei, por mais propício que me pareça, das obscuras origens do embrulho de presente. Imagino que surgiu de alguma necessidade helênica de envolver objetos. Deve ter aparecido na mesma ocasião das roupas íntimas. Segundo alguns confiáveis filósofos contemporâneos, é mais remoto que o Natal. Algumas tribos macedônicas, como comprovam recentes fósseis, já empocatam seus pertences para as festividades de fim de ano.

Sou contra o embrulho. É um empecilho social encontrar um montante de papel ou papelão que harmozine com o presente, o presentiado e o pior: com sua falta de moral. Pois o embrulho é, no fundo, um ato moralizante. Ele cria o encanto e a ansiedade diante de sua insensatez. Camufla os presentinhos de "valor simbólico" e as "lembracinhas singelas"; torna interessante o par de meias que você encontrou em liquidação e o único CD de MPB que ainda restava na loja. Torna o presente atraente, como as cerejas no peru, que todos comerão em seguida, fazendo daquela toalha bordada em casa um objeto de extremo desejo, as vezes, dados os convidados, de perseguição.

Tem o efeito de prolongar sensações. O agraciado, tenso, imagina o que deve haver ali dentro, embora na maioria das vezes, fica impossível encobrir. Todos sabem quando ganham uma bola, um livro, uma caneta ou um par de brincos. Para esses não há mistério; e o importante é especular, imaginar que o cretino do seu amigo secreto acertou, ou que a desligada da cunhada entendeu suas diretas.

Alguns, contudo, ivonam no efeito. Conheci alguns invólucros que inclusive emitiam sons, depois de tocados. Outros diagramam cores ou têm efeitos pirotécnicos. Há variados casos em que o embrulho sai mais caro que o presente. Tudo para aludir a sensação de grandiosidade e consideração. Por isso facilito e pra economizar no envoltório, eu excluo o presente. Sem presente, sem embrulho. Simples como uma noite de natal.Haja paciência.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Chácara!


Uma das mais complexas estruturas da sociedade moderna são as chácaras de fim de semana. São enormes áreas cobertas de um verde artificial, variando de gramados entre traves e begônias que remontam algum remoto passado edênico. São construídas enormes banheiras, chamadas piscinas; quadras de variados esportes, tantos quanto numa Olimpíada na França. São erigidos quiosques e saunas; vestiários e casarios para se livrar de todos os insetos que devoram os hóspedes nesse exterior paradisíaco.
São sugeridos iminentes e repetidos churrascos. Assam-se toneladas de carne recém descongeladas; a fim de entreter os homens presentes numa sugestiva confraternização em volta da fumaça. Litros de cerveja são consumidos, acrescendo piadas e barrigas nessas rodas viris. Os outros, crianças, noras, algumas espécies de cunhados, mulheres diversas e outros convidados menos íntimos, entretêm-se com centenas de engradados de refrigerante, muitas vezes sem gás.
São sempre indicados esportes, atividades, gincanas ou dezenas de meditações russas. Após uma semana intensa por trás de gravatas e de faróis indesejáveis, cariocas, paulistanos e toda espécie de desafortunados, têm a oportunidade de exercitar os flácidos e alvos corpos, sempre com contusão. Um Paulão sempre inventa um inédito salto mortal na piscina e acaba morto. As crianças choram pelo sangue derramado e a proibição do acesso ao nado.
A casa, como se costuma chamar, relembrando o passado colonial e a época áurea do café, faz com que todos se sintam no conforto do lar, mesmo que provincial, com senzala, cobras exóticas, lareiras esquecidas e latrinas coletivas. Dorme-se centenas de familiares num mesmo dormitório, congregando roncos, sussurros e nomes feios.
Ninguém liga pra monotonia, pra inércia, pra sabatina de um fim de semana tranquilo na chácara. O importante é levar criames de alface e rúcula para se gabar na vizinhança ou uma vermelhidão cancerígena na pele para frustrar seu chefe que insinua comentários. Gangrena, torções, ressaca e a fatídica gastura da carne mal passada misturada com cerveja quente; tudo o que pode ser facilmente tratado na glória da Cidade Grande, que ainda lhe dá cinco dias úteis para você se recuperar para os próximos dois inúteis seguintes.