terça-feira, 18 de novembro de 2008

Dona Cotinha


Dona Cotinha tinha por mania o hábito de contar anedotas. Um dos últimos relatos referia-se vagamente sobre o fato de o mundo se acabar. Jurara de que suas plantas emergiam alienígenas genocidas que haveriam de atacar a humanidade. Passado um mês de gritaria pelos corredores, descobriu-se que de suas violetas surgiam pulgões verdes e não aliens apocalípticos. Ainda ela dá vestígios de acreditar no Armageddon iminente, entretanto.
D.C., como foi apelidada; fazendo alusão ao caráter bélico-imperialista-catastrófico que havia em Washington (D.C) nunca tivera simpatia dos vizinhos. Certa feita afirmou que seu gato pardo, era preto. E que ele mantinha obscuras relações com a vizinha do 302. É claro que Abelardo, o marido do 302 não gostou nada da polêmica e das insinuações de pertencer a uma seita que sacrificava animais e outras formas de vida. As perjuras de Dona Cotinha contra a vizinhança tornaram-se insuportáveis. A filha do Cateto, do 210, ainda mostrava a língua e outras adjacências quando D.C. apontava no corredor.
Disseminou suspeitas ao homem de regata branca e peito depilado que visitava regularmente a moradora do 115. Nunca provaram nada. Nunca também conseguiram descobrir de onde vinha o terrível cheiro de nozes turcas que Dona Cotinha sentia sempre. O máximo que descobriram foi o cadáver do periquito amarelo que o caçula do 230 desovou havia meses. O dono do cantante pássaro, desvendado o crime tomou providências. Estilingues e armas de baixo calibre foram banidas do prédio. Seguindo-se a essa ela desenvolveu certa implicância com a barriga de Arnaldo, do 202. Além de excessivamente branca e peluda, seu abdômen possuía segundo D.C dizia: algo obsceno. Talvez fosse o recôndito do umbigo ou as dobrinhas logo acima da cintura. Terminou por expulsá-lo do condomínio.
Certo dia, convencida que de sua janela do banheiro entrava muita claridade, prejudicando o crescimento de suas violetas pulguentas, decidiu que deveria tapar o sol com a peneira. A idéia, quando foi apresentada a Rogerio Mateus, o porteiro, causou espanto e até comoção. A noticia logo se espalhou pelos interfones até o inquilino do 513 que nunca tinha sido visto, foi acionado. Muito burburinho agitou a semana e só comentavam aquilo. Todos previam algo terrível e totalmente prejudicial, de forma que foi decidido impedi-la.
Haveriam pelos métodos tradicionais ocidentais e depois pelos orientais persuadi-la a desistir da manobra de tapar o sol com a peneira. Muitas investidas e nenhum meio pacífico foi eficaz. Uns preferiram em assembléia partir para medidas mais eficientes, mas todos queriam agir na legalidade. Ficou decidido que ela deveria morrer de overdose de aspirinas. Não se reconheceu a voz que idealizou o plano – suspeita-se que foi o Abelardo, do 302 – mas logo foi sendo aceita sem protestos.
Na manha do dia que ela empunhou as telas para tapar misteriosamente suas janelas ela foi encontrada estirada, com olhos e boca abertas segurando um frasco vazio de aspirinas na mão. O sol forte entrava pelo velho e úmido banheiro doirando levemente o corpo desfalecido. Os legistas constataram que ela tomou no mínimo quarenta cápsulas de um analgésico comum. Consultados pela perícia sobre a morte suspeita de dona Cotinha, todos os vizinhos confirmaram: ela reclamava de fortes dores de cabeça; entrava muito sol pelas janelas, disseram.

Foi a última anedota de Dona Cotinha.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

M


From the moment the lights went off Everything had changed.Vi-me rodeado de uma centena de pessoas estranhas, histéricas, quando as luzes se acenderam. Havia tanta euforia e câmeras ligadas, soltando coloridos flashes como loucos vagalumes que apenas admirei e nada parecia ser o mesmo realmente. Um som forte de gritos femininos reverberou pelo salão lotado. Tão pequenos e demasiado simples eles cantaram “I was so high I did not recognize The fire burning in her eyes”. Mas ao longe e no fundo eu ouvi o fogo ardendo em seus olhos. É estranho – e até mesmo bom - gostar de alguém que não se conhece, não se vê. Cada dia alimentando um sentimento por alguém que se conhece só a voz. Ver ao vivo é melhor ainda, eu creio. I know I don't know you But I want you so bad Everyone has a secret Oh can they keep it? Oh No they can't.

Não, não vou mantê-los, e eu não te conheço. O show foi excelente, fui cantando cada verso com veracidade, sabendo que vivi cada letra nesse ano que já vai longo. Curto foi o musical. E tão intenso que nem tive tempo de me apaixonar naquela noite, nem rouco fiquei.

And we're only several miles from the sun, e estava tão quente, eu derretia como um picolé fora de casa. Entretando cada vez mais feliz por estar ali. Afinal nothing lasts forever, but be honest, babe It hurts, but it may be the only way. Era o único caminho que eu conhecia: uma voz fininha, um corpo magrinho nos guiando, nos embalando até um coração mais tranqüilo, às vezes perverso, mas sempre tranqüilo.

Minha preferida é Sunday Morning, uma das eternas. Começou tímida com o piano e logo cantei também: é domingo de manhã, a chuva caindo. Roubo algumas cobertas e divido peles, as nuvens nos envolvendo em momentos inesquecivéis... É tão fundamental, talvez seja tudo o que eu precise, eu via tanta coisa no escuro, convidando alguns ossos quebrados, umas costelas pra descansar em mim. E eu cantando cada vez mais devagar, não querendo nunca que acabasse. E eu juro, no final, havia uma flor em seu cabelo, mesmo sabendo que eu teria de ir pra casa sem você.

E assim, como começou, logo veio o fim. Mas eu não havia terminado ainda. Acho que nunca vai acabar; esse show, essa canção, essa lembrança. And with a tear in my eye Give me the sweetest goodbye That I ever did receive.